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sexta-feira, 1 de maio de 2009

João das Pedras: O ladrão que se tornou santo

Em 1999, uma visita ao Cemitério de São Benedito durante o Dia de Finados fez com que a historiadora Michelle Maia encontrasse o tema de uma pesquisa que se estenderia por seis anos. Recém-chegada à cidade, ela estranhou a aglomeração de gente e o grande número de velas e lembranças depositadas em um dos túmulos, que na época não tinha sequer identificação. Mas ao perguntar quem era, disseram apenas que o nome do morto era João e que ele havia morrido queimado. Resposta, para ela, insuficiente para justificar a mobilização em torno do local.
O túmulo guarda os restos mortais de João das Pedras, o ladrão mais conhecido de São Benedito durante os anos 70. Isso mesmo. Um ladrão que, por conta de sua morte trágica e toda uma mitologia criada a seu respeito ao longo do tempo, passou a ser objeto de culto da religiosidade popular. Na cidade, João das Pedras é o morto que mais recebe visitas e encomendas de missas, mesmo à revelia da Igreja Católica.Três anos depois daquela visita, já aluna do curso de História da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), Michelle se interessou por aquele morto que suscitava tanto demonstrações de fé quanto de descrédito nos moradores.“Descobri que dona Eridan, minha vizinha, era sobrinha do João das Pedras. Foi ela quem me contou que ele era ladrão e que tinha morrido eletrocutado por uma cerca elétrica, enquanto tentava entrar numa casa. A partir daí comecei a questionar essa devoção. O que faz com que uma sociedade conservadora, em que a conduta dos demais é sempre observada de perto, atribua santidade a um homem que não tinha nada de extraordinário e que, ainda por cima, roubava?”.A partir daí, ela passou todos os Dias de Finados ao lado do túmulo para acompanhar as demonstrações de fé dos visitantes. A historiadora lembra que a primeira dificuldade na pesquisa foi encontrar registros e documentos oficiais sobre João das Pedras.“Fiz pesquisas na delegacia e no Fórum Municipal de São Benedito, mas não encontrei sequer registros de suas prisões. A família informou que os documentos dele se perderam durante um incêndio”, contou.
Por conta disso, Michelle recorreu às narrativas e construções a partir da oralidade. Diante da riqueza do material coletado, Michelle estendeu suas pesquisas para o mestrado em História Social da Universidade Federal do Ceará (UFC), onde está prestes a defender a dissertação “João das Pedras: um santo às avessas”.Ela conta que uma das coisas que mais a surpreendeu durante as entrevistas foi ouvir do senhor João Crescença, 78 anos, ex-carcereiro que conheceu João das Pedras e tantas vezes tomou conta dele na delegacia local, que aquele era o ladrão dos pobres.
“Muitas pessoas que entrevistei justificavam o fato dele ser ladrão dizendo que ele roubava apenas roupas e alimentos para doar aos pobres, além de nunca ter cometido um ato violento. E como ele conseguiu fugir várias vezes da cadeia, muita gente diz que ele tinha o corpo fechado por uma oração dada pela avó, que ele sempre carregava”, explica Michelle. Mas na opinião da historiadora, o fato determinante para que ele fosse considerado um santo foram as circunstâncias em que ele morreu. Em 1978, depois de três tentativas de arrombamento, Epifânio Rodrigues instalou de forma ilegal uma cerca elétrica na casa.
Na madrugada do dia 4 de abril, João das Pedras morreu eletrocutado ao entrar em contato com a cerca. Pela manhã, algumas pessoas amarraram o corpo do ladrão numa vara e o arrastaram até o Centro da cidade, fazendo chacotas e ofensas em plena rua. “Mais do que a morte, a profanação do corpo foi o que o redimiu aos olhos do povo, até porque na época estava no período da Quaresma, em que se deve guardar respeito. É a idéia do homem injustiçado, cuja morte foi tramada para que ele não pudesse mais ameaçar as classes superiores. E tudo porque ajudava os pobres”.A soma de todos esses fatores fez com que uma pessoa que teria tudo para passar despercebida pela vida fosse transformada num símbolo capaz de realizar milagres e proteger contra os perigos. Mas a pesquisadora frisa que esta não é uma devoção unânime na cidade. “Muitas pessoas são contra esse culto, dizem que é ignorância do povo ver um santo num ladrão. No Dia de Finados, há quem vá ao cemitério para questionar a peregrinação, mas quem acredita dá sempre a mesma resposta: que ele é santo porque ajudava os pobres, morreu queimado e o corpo foi muito judiado”, destaca.

HISTÓRIA
Estudo busca entender ligação com fenômenos sociais

Fortaleza. Para o historiador Régis Lopes, que orienta a pesquisa “João das Pedras: um santo às avessas”, no mestrado em História Social da UFC, a produção de pesquisas sobre pessoas consideradas “à margem” da sociedade podem ser creditadas às renovações ocorridas nos estudos da História Social, no decorrer do Século XX. Assim, o que passa a interessar não é o indivíduo isolado, como nos estudos dos “grandes homens” do passado, e sim a conexão com as mudanças e permanências sociais, a partir das trajetórias individuais.“Em relação à história das religiões, existe o interesse suscitado pelas manifestações coletivas que não são oficiais. Entra em cena a pesquisa sobre as crenças populares, que não obedecem aos padrões institucionais”, explica. São pessoas cuja santidade nasce a partir do imaginário popular, para quem a falta de reconhecimento oficial é irrelevante para definir o poder de proteger e conceder graças. Ele cita como exemplo a devoção em torno do túmulo de Jararaca, cangaceiro que fez parte do bando de Lampião.Depois de ser preso em Mossoró (RN), Jararaca foi enterrado vivo pela Polícia. Essa história poderia ser percebida como um fato relativamente comum na crônica das violências policiais da época, mas o povo começou a fazer promessas no túmulo. Assim como no caso de João das Pedras, a maneira como Jararaca morreu despertou a devoção do povo, que atribuiu santidade ao bandido.“Muitos santos populares são pessoas comuns, mas que tiveram mortes trágicas ou sofreram alguma violência. A devoção é uma experiência social, porque só há santo quando há devotos”, diz Régis. Mas se este é um campo fértil em possibilidades de pesquisa, ele vê, na falta de perspectiva histórica de alguns trabalhos, a causa para inconsistências e problemas de interpretação desse fenômeno social e religioso.“Há pesquisas que tratam esse fenômeno como obra do acaso, como se não tivessem trajetórias dinâmicas no tempo. Outra questão é a falta de estudos com conhecimento sobre Teologia Católica e as interpretações bíblicas. Muitas idéias populares estão em articulação criativa com a Bíblia. Como estudar essa religiosidade sem conhecer a Idade Média ou até a História da África? Somos herdeiros e deserdados de muitas culturas”. E como compreender a devoção e a fé em relação a pessoas que não se encaixam no que a tradição e as instituições dizem ser um santo? Para ele, a vida verdadeira ocorre fora daquilo que se considera oficial e é a partir disso que se pode compreender as mudanças no tempo. Enquanto o trabalho do pesquisador é questionar, o devoto simplesmente tem fé e se considera agraciado pelos benefícios atribuídos à intervenção divina desses santos. “As instituições erram, oprimem, não são donas da verdade e gostam de agradar os ricos. O povo sabe e sente na pele. Jararaca e João das Pedras são santos, seus túmulos são venerados pelo povo. São pessoas que sofreram violências que o povo continua a sofrer, por isso há essa grande identificação com esses santos populares. Simbolicamente e concretamente, o povo continua sendo enterrado vivo”.

FIQUE POR DENTRO

Saiba mais sobre o piloto do RegionalChamado de ´o bom ladrão´, São Dimas é considerado o primeiro santo. Ele foi crucificado ao lado de Cristo. No Ceará, Padre Cícero é o maior exemplo de santo a partir da devoção popular. Seu túmulo é ponto de peregrinação. Durante todo o ano, são encomendadas missas por João das Pedras. Seu túmulo é o mais visitado no Dia de Finados, em São Benedito. Mesmo invocado por várias razões, acredita-se que João das Pedras seja protetor das viúvas e das mulheres em resguardo.

Mais informações:
Pesquisadora Michelle Maia
michellefmaia@hotmail.com
Mestrado da UFC(85) 3366.7741www.historia.ufc.br

Notícia retirada do site Diário do Nordeste

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